O CORREIO conversou com o baiano, expoente da infectologia no cenário nacional. Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o médico tem opiniões duras a favor do isolamento social, e acredita que ainda estamos muito distantes do momento da flexibilização.
Como baiano, Croda analisou a situação do estado. Segundo ele, a união de forças entre o Governo do Estado e a Prefeitura de Salvador achatou a curva de contaminação de forma satisfatória. No entanto, ainda estamos longe de uma situação confortável e do desejado retorno ao normal:
Como tem observado o combate à covid-19 na Bahia?
Acho que em Salvador essa união de esforços do Governo Estadual com o Municipal gerou um impacto importante. A Bahia teve uma resposta interessante se comparada com outros estados do Nordeste. A gente vê que Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte já colapsaram seus serviços de saúde. Salvador e a Bahia estão no limite, mas estão gerindo bem a crise até o momento.
Como você avalia a ocupação de leitos aqui?
Quando comparamos os números da Bahia com os de outros estados (os dados são da Organização Pan-Americana de Saúde, OPAS, do dia 2 de junho), a taxa na Bahia era de 68%. No Ceará, era 86%, Maranhão 97%, Pernambuco 96%, Rio Grande do Norte 93%, Amapá 97%, Pará 87%. Veja que a Bahia tem uma taxa de ocupação ainda bastante confortável em termos de terapia intensiva. Isso mostra que o estado não tem esgotamento da saúde, ainda tem capacidade de resposta.
Isso traz tranquilidade?
A taxa de contágio (medida por um dado epidemiológico chamado Rt) ainda não desceu para baixo de 1, que é quando o número de novos casos começa a cair (nota: Rt acima de 1 significa expansão da epidemia, abaixo de 1 retração). Então, a gente tem mantido um crescimento de casos, ainda que mais lento, mas ascendente. Isso não permite flexibilizar as medidas de distanciamento porque, apesar desse achatamento da curva na Bahia, ele ainda não foi suficiente para liberar leitos de UTI. Só isso permite o retorno ao ‘normal’.
Então quando ficaremos tranquilos?
Enquanto não tiver uma curva epidemiológica descendente, com diminuição de número de casos por 14 dias seguidos, a gente não pode propor uma flexibilização. Em termos epidemiológicos, é muito difícil flexibilizar diante de uma curva em crescimento. No momento que se flexibiliza as restrições nesse cenário, a tendência é a taxa de contágio aumentar e os leitos, que hoje estão suficientes, não suportarem esse aumento de casos.
O Brasil não conseguiu até hoje atingir uma taxa de contágio (Rt) abaixo de 1 de maneira constante em nenhum estado. Não basta atingir, tem que manter. A Bahia vinha figurando entre os estados com menor Rt, graças ao isolamento e às medidas de uso de máscaras extensivo na população, tanto de alta como de baixa renda. A comunicação foi muito eficaz na Bahia. Apesar de não ter ficado abaixo de 1 de maneira constante, na média vinha entre as mais baixas do Brasil. No entanto, perceba como esse Rt da Bahia cresceu nos últimos dias.
Devemos nos preocupar com a subida dessa taxa?
O Rt vinha se mantendo entre os mais baixos até o final de maio (chegou a ficar abaixo de 1 entre 21 e 25 de maio, indicando retração do contágio. Mas hoje, nos dados que tenho aqui, já está entre os sete estados com maior Rt (os dados mais recentes no momento da entrevista eram de 30 de maio, mostrando Rt de 2,1). Acredito que essa aceleração tenha ocorrido pela interiorização do vírus, sobretudo no Extremo Sul do estado.
“A taxa de contágio da Bahia vinha entre os mais baixos até o final de maio. Mas hoje está entre os sete estados com maior taxa. Acredito que tenha ocorrido pela interiorização do vírus, sobretudo no Extremo Sul”
Esse crescimento é normal?
A interiorização ocorreu em todo o Brasil, em diferentes momentos. O que devemos nos preocupar é que, quando a pandemia vai para o interior, a carência de leitos de UTI é ainda menor. Esse é o fato preocupante. O governador (Rui Costa) provavelmente decretou toque de recolher no Extremo Sul porque nota uma carência importante de leitos.
O interior da Bahia está preparado?
Apesar da Bahia apresentar taxa de ocupação razoável, sabemos que a distribuição desses leitos é desproporcional entre regiões. A maioria dos leitos de UTI se concentra na capital. Então gera preocupação por ter pessoas no interior que vão precisar de UTI e não terão essa disponibilidade. 80% das cidades do Brasil tem menos de 20 mil habitantes e não possuem terapia intensiva. Se tiver dois ou três pacientes que precisem de UTI nessas cidades, eles terão que buscar o centro de referência, que geralmente fica longe.
“A maioria dos leitos de UTI se concentra na capital. Então gera preocupação por ter pessoas no interior que vão precisar de UTI e não terão essa disponibilidade”
Essa interiorização podia ser evitada?
É difícil controlar o contato no interior, porque a maioria das atividades de trabalho são braçais, de comércio ou agricultura. É diferente das atividades comuns aos grandes centros urbanos, onde pode haver teletrabalho. A gente não conseguiu conter o vírus nos grandes centros, então chegou ao interior e vai ser ainda mais difícil. O Estado vai ter que organizar bem a rede hospitalar por região, ofertar leitos de UTI de maneira adequada, além de aumentar medidas de distanciamento social. Fechar comércio, impedir transporte público, o que tiver necessidade.
Baiano diz que taxa de contágio subiu na Bahia por conta da interiorização (Foto: Wilson Dias / Agência Brasil) |
É fato que a covid-19 migrou para as populações mais pobres, e por isso temos tido mais mortes?
Sim, essa migração já ocorreu em todo o país e por isso deu uma acelerada importante no número de casos e de óbitos, batendo recordes diários. Isso se deve sobretudo porque houve essa migração social do vírus e as populações mais vulneráveis é que sofrem mais. Não conseguem fazer distanciamento social ideal, moram muito perto ou muitos na mesma casa. A taxa de transmissão nesses locais é maior e, além disso, tem menos leitos de terapia intensiva. O SUS por 100 mil habitantes tem menos leitos do que o sistema suplementar. Resumindo: quem vai se infectar mais é a população mais pobre e, por não ter leitos suficientes de UTI, quem vai morrer mais é a população pobre.
“A taxa de transmissão nos bairros mais pobres é maior. Além disso, existem menos leitos de UTI para essa população. Os mais pobres são os que sofrem mais”
A população negra é mais vulnerável ao vírus?
A questão racial está mais associada à vulnerabilidade social. A população mais pobre é majoritariamente negra. E essa população de baixa renda, por problemas de acesso ao sistema de saúde, tem mais comorbidades como diabetes e hipertensão, que são fatores de risco grave para covid-19. Então, negros são associados às comorbidades. Não é a raça, propriamente dita, mas, sim, a condição social. Não é uma questão de genética, e, sim, social.
Como está a capacidade de testagem da Bahia?
Segundo dados da OPAS, a Bahia tem menos de 10 testes por mil habitantes. Estados como o Mato Grosso do Sul tem 30 testes por mil habitantes. Em relação à positividade (se o teste deu positivo), a Bahia tem 15%, enquanto o MS tem 3,5%. Se você amplia testagem entre pessoas assintomáticas, ou com sintomas leves, você aumenta a chance de testes negativos. É o caso do MS. Se testa poucos pacientes internados e os óbitos, a chance de dar positivo é grande. Então, esse é o quadro da Bahia.
“A Bahia tem menos de 10 testes por mil habitantes. Estados como o Mato Grosso do Sul tem 30 testes por mil habitantes”
Estamos próximos de bater o teto de testagem diárias de óbitos? Pode ser que deixemos de documentar óbitos?
Pode ser que no futuro isso aconteça, mas por enquanto o Brasil tem capacidade de realizar entre 7 mil e 8 mil testes diários. Os óbitos giram em torno de 1,4 mil por dia, então temos capacidade de testar todos os óbitos, primeiro, e depois pacientes graves e leves. Pode ser que alguns estados já não tenham capacidade e que o número de óbitos supere a capacidade diária de testagem, mas na Bahia não temos essa situação.
Estamos no meio ou caminhando para o fim da pandemia?
Pelos dados que a gente pode observar do Inquérito de Soroprevalência Covid-19, realizado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), existem cenários diferentes em cada região. Talvez no Norte tenhamos chegado num platô, principalmente em Manaus e Belém, onde houve grande exposição ao vírus. No Nordeste, quem tem mais casos de soropositividade é Fortaleza e Recife. A Bahia, por ter controlado bem a doença, tem soropositividade baixa, como estados do Sul e do Centro-Oeste. Nesses casos, a curva é ascendente.
Fonte: Correio On Line / Vitor Villar