Afinal, o que é ter propósito?

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Imagem: Envato

*Por Cid Torquato 

Propósito se tornou uma das palavras-conceito mais valorizadas dos últimos tempos, normalmente figurando como justificativa e razão de ser para ações de pessoas, empresas e instituições que desejam se posicionar como protagonistas de causas relevantes. Propósito é compreendido como parte da essência de alguma coisa ou alguém e não pode, nunca, ser confundido com um mero slogan motivacional, nem com um simples adorno discursivo. Mas deve, sempre, ser entendido como um conceito estruturante, intrínseco, com o poder de orientar escolhas e conferir sentido às ações humanas ou institucionais. Ao alcançarmos sua verdadeira profundidade, percebemos que viver com propósito, muito além da boa vontade, é viver genuinamente com intenção, coerência e impacto profundo em seu entorno. Mas de onde vem a palavra “propósito” e qual é o seu real significado?

Do ponto de vista morfológico e linguístico, propósito vem do latim propositum, que significa “aquilo que se coloca adiante”, o objetivo maior que orienta nosso caminho, com a conotação de sentido, intenção, finalidade, direção. Diferentemente de metas, que são específicas e, em geral, temporárias, propósito tem compromisso de permanência, de ser mais definitivo, independente de circunstâncias imediatas, não esmorecendo diante de obstáculos, mas, ao contrário, perseverando justamente nos momentos mais desafiadores.

Engana-se, contudo, quem, como eu acima, pensa que invocar propósito é um modismo temporário, passageiro ou cíclico. A filosofia, na verdade, sempre dedicou atenção central à discussão do propósito da vida, ainda que com diferentes abordagens. Aristóteles falava em telos, a finalidade última, que orienta tudo o que existe em busca de excelência e plenitude. Viktor Frankl, psiquiatra austríaco, sobrevivente do Holocausto, escreveu que o ser humano suporta qualquer “como” quando encontra um “porquê”. Que para ele é força vital direção e cura! Para Heidegger, tinha a ver com a consciência de nossa finitude, enquanto Nietzsche falava em poder e potência! Já, Kant via princípios morais segundo os quais devemos agir e que gostaríamos de ver universalizados. Hannah Arendt entendia a ação humana como renovação, sendo propósito a energia da transformação, em certa concordância com Sartre e sua visão de escolha existencialista! E, mais recentemente, Peter Drucker, sobre a arte da gestão, argumentava que empresas existem para gerar valor à sociedade e que esse propósito é anterior ao conceito de lucro.

No plano místico, temos várias abordagens com diferenças muito sutis! Por exemplo, na mitologia romana, confunde-se com destino, sempre marcado pelas guerras! O cristianismo vê propósito como missão, como vocação, como inspiração divina! No catolicismo, o espaço do livro arbítrio é menor do que no protestantismo de Weber, onde o trabalho pode ter papel transformador! Santo Agostinho dizia que o que amamos determina nossos caminhos, enquanto Tomás de Aquino via a transcendência como motor do propósito! No oriente, Dharma visa harmonia, que, no fim das contas, é o que queremos dos nossos propósitos, não é verdade?

Todos, em última instância, parecem concordar que propósito é aquilo que dá sentido ao agir e, consequentemente, à vida e ao viver. Trata-se da questão escatológica per se, a ver com os fins últimos do homem, da humanidade, com o próprio sentido de humanismo, do porquê existimos, via ótica coletiva e por questões pessoais, racionais e lúcidas ou sob a mística do esotérico e do transcendental. Afinal, que propósito ou propósitos conseguimos emprestar às nossas próprias existências?

Enfim, propósito é uma palavra que parece tão cheia de propósito, que tendemos a associá-la automaticamente ao positivo e ao bem. Mas, na verdade, trata-se de expressão a princípio neutra, que depende do objeto para se definir e qualificar. Podemos ser guiados por propósitos nobres e elevados ou, infelizmente, também estamos sujeitos a desejar o mal, o negativo, o antissocial e o criminoso como modo de existir. Como exemplos de propósitos virtuosos lado-a-lado com perversos, temos os esforços de preservação da Amazônia em contraste com o extrativismo ilegal e a pecuária irresponsável; o confronto entre democratas e fascistas; os indecentes conflitos religiosos; uma minoria vivendo na criminalidade, mas impactando negativamente a vida de todo o mundo e mais, muito mais!

Mas, voltando ao bem contra o mal… Quando olhamos para o mundo empresarial, esse mesmo alinhamento com significado se torna cada vez mais imperativo. A marca Patagonia, por exemplo, atua na indústria da moda com o propósito explícito de “salvar o planeta”, o que, para além da retórica, inspira desde o design de produtos até campanhas de ativismo ambiental, doações constantes e estímulo ao consumo consciente. No Brasil, Natura consolidou um modelo empresarial baseado na ideia de “bem-estar”, combinando cuidado pessoal, sustentabilidade e relações éticas com comunidades extrativistas da Amazônia. Ambas mostram que propósito autêntico se expressa em decisões consistentes e não apenas em narrativas superficiais, como também se posicionam as organizações sem fins lucrativos Médicos Sem Fronteiras e Instituto Ayrton Senna, entre tantas outras referências que poderiam ser citadas!

Essa mesma lógica também vale para indivíduos. Pessoas com propósito vivem com maior clareza, resiliência e coerência interna. Propósito não depende de grandiosidade, mas de autenticidade. Ele pode estar na carreira, na família, no cuidado com outros, na construção de projetos, na busca por conhecimento ou na atuação social. Quando o propósito é real, ele se torna bússola, ajuda a enfrentar crises, orienta escolhas e fortalece a nossa identidade. Por favor, levante a mão quem não acha que Malala, Martin Luther King, Chico Mendes e Marina Silva, Raoni e Mandela, Dr. Drauzio e José Serra eram ou são figuras com propósito!

Manifestado com diferentes intensidades em nossas trajetórias, é possível observar, na prática, o poder energético e arrebatador do propósito. Eu mesmo sou um exemplo emblemático do drive transformador que o descobrimento de um novo propósito pode imprimir na vida de uma pessoa! Após injustificável mergulho, em 2007, que me tornou tetraplégico, comecei a ceder às limitações impostas pela deficiência, perdendo coragem e alimentando desejos de abreviar minha existência, mesmo sem condições de fazê-lo de forma autônoma. Militando pela causa da pessoa com deficiência, consegui reconstruir minha auto-estima e minha trajetória sobre um novo eixo de significado. Meu novo propósito me reformatou e, mais do que isso, me reposicionou no mundo. A partir desse propósito claro e inadiável, intensifiquei minha dedicação ao trabalho, comecei a treinar bocha paralímpica, ascendi a secretário estadual e, depois, municipal da pessoa com deficiência em São Paulo, liderei e continuo liderando políticas públicas estruturantes, bem como negócios inovadores, abrindo caminhos concretos para a inclusão de centenas de pessoas. Interessante como um propósito autêntico é capaz de transformar muito mais do que apenas uma vida!

Em um mundo de incertezas, ter propósito é um privilégio, pelo autoconhecimento sobre o que fazemos e o motivo pelo qual fazemos, construindo marcas mais sólidas, relações mais éticas e impactos positivos mais duradouros e consistentes. Portanto, nesta data, desejo, do coração, que cada leitora e cada leitor consiga fazer com que seus projetos, pessoais e profissionais, caminhem firmemente na direção dos propósitos que lhes dão sentido à vida!

Cid Torquato é advogado e Embaixador do ICOM, plataforma de Intermediação em Língua de Sinais.
*Este texto reproduz a opinião do autor e não reflete necessariamente o posicionamento da Mercado&Consumo

Fonte: Mercado&Consumo

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