Dependência do Conforto: Um Mal Disfarçado de Bem-Estar

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Gabriela Sá*

A maioria de nós acorda pela manhã com a tranquilidade de saber que terá algo para comer, que há um celular por perto para fazer as pesquisas necessárias durante o dia e que, se não quisermos sentir o chão sob os pés, temos inúmeras opções, de sandálias a tênis de corrida. Estamos cercados de facilidades, de conveniências, de soluções que nos poupam esforço e incômodo. O que antes era sinônimo de sobrevivência, hoje se tornou sinônimo de conforto. E, ironicamente, o que tanto buscamos para nos proteger do desconforto parece estar nos afastando de algo essencial: a vitalidade da experiência humana.

Durante a maior parte da existência do ser humano na Terra, a vida foi marcada por incertezas, frio, calor, fome e riscos constantes. Caçar, caminhar descalço, enfrentar o vento e a chuva eram partes naturais da rotina. Hoje, vivemos sob um teto seguro, com água quente, roupas macias, comida pronta e entretenimento infinito ao alcance de um toque. Nunca estivemos tão protegidos, e, paradoxalmente, nunca estivemos tão ansiosos, imediatistas, cansados e mentalmente desconfortáveis. A sensação de paz, propósito e tranquilidade parece cada vez mais rara, talvez porque tenhamos nos afastado daquilo que nos fazia sentir vivos: o enfrentamento do desconforto.

No livro A Crise do Conforto, Michael Easter traz um alerta profundo sobre essa inversão moderna. Ele explica que o excesso de conforto tem um custo psicológico e fisiológico. Nosso corpo foi moldado pela adversidade: fomos desenhados para nos mover, lutar, resistir e adaptar. Quando nos privamos disso, criamos um descompasso entre o que o corpo espera viver e o que efetivamente vivemos. Essa desconexão gera uma sensação de vazio, apatia e desmotivação. O autor argumenta que o desconforto é, paradoxalmente, o caminho para o bem-estar, pois ativa mecanismos internos de regulação e nos reconecta ao presente, ao corpo e à natureza.

Easter cita o conceito japonês de misogi, uma filosofia ancestral que propõe rituais de purificação por meio do desafio e da exposição a condições extremas. O misogi parte da ideia de que, ao nos colocarmos em situações realmente difíceis, que exigem esforço físico e mental além do previsível, revelamos nossa verdadeira força e relembramos quem somos de fato. O desconforto, então, torna-se um portal de autoconhecimento e significado. O misogi não é sobre provar algo ao mundo, mas sobre provar a si mesmo que ainda há potência, coragem e presença dentro de nós.

O misogi propõe uma regra provocativa: escolher desafios em que tenhamos apenas 50% de chance de sucesso. Isso porque, nesse limiar entre o possível e o impossível, somos forçados a lidar com nossas limitações percebidas. Quando tudo é fácil, nossa mente se acomoda; quando é difícil demais, ela se desespera; mas quando é difícil o suficiente, o desconforto desperta em nós o que há de mais humano. Imagine correr uma maratona (42 km) tendo treinado apenas para uma meia (21 km). Nesse caso, o corpo não tem certeza de que dará conta, e justamente aí está o poder transformador da experiência, o corpo e a mente precisam se unir para tentar o impossível.

A verdade é que vivemos anestesiados pelo conforto. Nossas rotinas são cuidadosamente projetadas para evitar esforço, desconforto e frustração. No entanto, sem esses elementos, perdemos a capacidade de lidar com a própria vida. Desafiar-se física, mental ou emocionalmente, não é apenas uma forma de testar limites, mas de reacender uma força interior que o excesso de comodidade adormeceu. Ao enfrentar algo difícil, sentimos novamente a vibração da conquista, o prazer da superação e a gratidão pela simplicidade. O desconforto nos devolve ao presente, à humildade e à alegria genuína de estar vivo.

Por isso, quando se sentir desconectado, perdido ou sem energia, talvez o que esteja faltando não seja descanso, mas um misogi. Crie um desafio que te tire do previsível, que exija esforço real, que te coloque frente a frente com seus próprios limites. Não precisa ser escalar o Everest, mas precisa ser algo que te mova, que te devolva o senso de conquista e a consciência da tua força. É nesse território incômodo, onde o corpo e a mente lutam, que nascem as maiores revelações sobre quem somos.

No fim, talvez a verdadeira liberdade não esteja em eliminar o desconforto, mas em aprender a viver com ele.

Como diz Michael Easter, “é no desconforto que encontramos a nós mesmos”. E talvez seja exatamente aí, nesse espaço de esforço e vulnerabilidade, que a vida extraordinária se esconda.

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