Gilberto Gil e Caetano Veloso, no aeroporto, a caminho da Europa (Foto: Artur Ikissima/Divulgação)
Cortaram o cabelo de Caetano na cadeia, mas agora já estava crescendo. Gil também não cantava em público havia sete meses. Naquele 20 de julho de 1969, há portanto 50 anos, os baianos pisaram num palco pela primeira vez após terem sido presos pela ditadura militar. No mesmo dia, ou melhor, naquela mesma noite (afinal, só há lua diurna muito raramente) o Homem também pisava na lua. Sim, aquele foi um dia raro: Caetano Veloso & Gilberto Gil, os gêmeos plurivitalícios, se despediam da Bahia e do Brasil antes de partirem para o exílio. E um dos shows aconteceu logo de manhã, matinê com meia-entrada para estudantes, acendendo a lua/luz diurna no palco do Teatro Castro Alves.
Em Cinema Olympia, uma das inéditas, Caetano cantava: “Não quero mais essa tardes mornais, normais / (…) / Eu quero pulgas mil na geral, eu quero a geral”. Lá no satélite natural, Neil Armstrong disse: “Um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade”. Onde seria mais longe, ali ou em Londres? Afinal, a lua a gente vê de cá, por sobre a ilha de Itaparica. E se muita gente até hoje não acredita na conquista americana da cuja, Caetano também já disse que brasileiros tinham dificuldade para reconhecer a existência de estrangeiros. Assim, aquele show foi o lançamento de uma aventura como a dos astronautas, dos argonautas. Uma festa, mas uma festa de despedida. Navegar é preciso? Pois foi forçado.
Contracapa do Barra 69, lançado em 1972, traz trecho de hino do Esporte Clube Bahia (Foto: Reprodução/CORREIO) |
Na plateia, Jorge Amado (até Paulo Coelho o brasileiro mais lido no exterior) disse: “Estou comovido. Isso parece extremamente sofisticado, mas não é. Tudo que eles fazem tem profundas raízes baianas. E minha comoção se manifesta na barriga. É como se eu sentisse um nó nas tripas”. Lembre-se que o Tropicalismo era então uma novidade tida por muitos como alienada, entreguista. Daí o destaque do escritor para as raízes locais: nós nas tripas, coração. Já o poeta Augusto de Campos, também presente no TCA, preferia justamente o aspecto universal do som: “Estes baianos estão cada vez mais interplanetários”. Escola de Samba Juventude do Garcia & Os Leif’s.
Que repertório daria conta de tanta complexidade? Pessoas se espalhavam pelos corredores do teatro. Gil, em Frevo Rasgado: “Bagunça que eu fiz tão calado / Foi dentro do meu coração”. Aquele tinha sido o carnaval de Atrás do Trio Elétrico. E não deixa de soar perversamente irônico imaginar (ou lembrar) Caetano cantando, às lágrimas, em Irene (outra das novas, feita na cadeia): “Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui”. Talvez por tudo isso (mecanismo de defesa) ele tenha tão poucas lembranças daquelas horas. Barra 69 foi o nome dado ao disco, anos depois, porque, de fato, a barra estava pesada. Por outro lado, era só um show. Um show para levantar grana para amenizar os tantos meses impedidos de trabalhar. Grana para se picar.
Mas eu não falei em luz apenas para jogar com a lua (que afinal alumbra com luz alheia). E sim porque a iluminação do show foi bastante elogiada, inclusive por Carlos Coqueijo, que a classificou como “dinâmica, funcional, acompanhando o ritmo e às vezes dando uma interpretação concreta visual do sentido das letras”. Sentidos sentidos no palco e nas ruas. “Somos do povo o clamor”, Madalena chorava. Sua mãe consolava, dizendo assim: “Ninguém nos vence em vibração”. Caetano & Gil juntos nos palco não é coisa de se jogar fora.
E por fim “Aquele Abraço”. Foi a primeira execução pública da canção. Que samba! “A Bahia já me deu régua e compasso…”. Os meninos estavam prontos, a terra os esperaria. Afinal, por mais distantes, quem jamais os esqueceria?
‘Cadê Gil?’: cantor havia viajado ao Rio, para resolver questões burocráticas, e acabou não participando da foto de divulgação do show (Foto: Reprodução) |